sábado, 3 de maio de 2014

A molécula da sobrevivência
Aos 100 anos, ganhadora do nobel de medicina pela descoberta do fator de crescimento neural (ngf) mantém fundação que incentiva o trabalho de mulheres cientistas na África
 
martin schweig/biblioteca nacional de medicina, bethesda
A primeira vez que vi de perto a cientista italiana Rita Levi-Montalcini, ganhadora do prêmio Nobel de Medicina ou Fisiologia, em 1986 – e hoje com um século de idade, completado em 22 de abril desse ano – ela tinha 81 anos. Delicada e elegante, na ocasião recebia uma placa em sua homenagem, que atualmente adorna o anfiteatro do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A admiração transparecia no semblante dos cientistas ali reunidos. Afinal, essa mulher trilhou um duro caminho, pesquisando em locais escondidos, como laboratórios caseiros improvisados, fugindo da perseguição nazista aos judeus em sua terra natal nos fatídicos anos 30 e 40.

Nesse período, conheceu na Itália uma pesquisadora alemã também perseguida pelo nazismo, Hertha Meyer, que se tornou referência no Brasil ao introduzir a cultura de tecidos e desenvolvendo projetos no Instituto de Biofísica da então Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro. A amizade das duas resultou na primeira imagem de um gânglio do sistema nervoso periférico cultivado em placa de vidro usando para isto um meio de cultura de um tumor, o sarcoma – feita no laboratório carioca em 1952. Emblemática do trabalho de Rita, a imagem assemelhava-se a um sol brilhando. Mostrava o gânglio irradiando de seu centro os axônios, prolongamentos de neurônios que levam a informação elétrica para outras células neurais. Revelava que as células tumorais produziam “algo misterioso”, fazendo com que neurônios expandissem seus axônios, partindo do gânglio.

Mais que isso, a cientista mostrou que os neurônios do gânglio da raiz dorsal (responsável por transformar e enviar informações sensoriais para o sistema nervoso central) dependiam desse recurso para se manter vivos. Caso o derivado de sarcoma fosse substituído por meio de cultivo comum, resultava na morte de todos os neurônios do gânglio. A característica responsável por esse efeito foi chamada de fator de crescimento neural, nerve growth factor (NGF na sigla, em inglês). Foi a primeira molécula com efeito na sobrevivência e crescimento de neurônios – isolada in vitro e, mais tarde, clonada.

No início do século passado, embriologistas utilizavam em seus experimentos salamandras ou rãs, capazes de regenerar membros inteiros. A retirada ou implantação de um membro em embriões desses animais levava à diminuição ou aumento na população de neurônios sensoriais que inervava aquele membro, experimento no qual se notabilizou o embriologista alemão Viktor Hamburger (1900-2001), radicado nos Estados Unidos. Naquela época, o cerne do problema na embriologia se concentrava nas descobertas de que os neurônios de gânglios sensoriais ou motores da medula espinhal podiam ser modificados caso seu alvo de conexão mudasse.
Ricardo de Luca/AP/Imageplus
Pesquisadora na comemoração de seu centenário, em abril de 2009
Rita Levi-Montalcini era fascinada por esses experimentos que apontavam para a existência de um controle do número neuronal pelo tecido-alvo. Os estudos de Hamburger inspiraram seus primeiros passos na Universidade de Turim após ter terminado o curso de medicina. No entanto, o “Manifesto per la difesa della razza”, assinado por Benito Mussolini, impedia que pesquisadores não arianos frequentassem academias. Filha de mãe artista e pai engenheiro elétrico, ambos judeus, Rita teve de se retirar. Sua curiosidade e devoção à ciência, porém, a levaram a montar um laboratório improvisado em seu quarto, na casa dos pais. Quando Turim foi bombardeada, a família mudou-se para o campo, em Piemonte, onde ela novamente 
instalou seu laboratório. Giuseppe Levi, eminente histologista, foi seu primeiro assistente.

RUMO AO BRASIL
Quando também o refúgio se tornou perigoso, a pesquisadora fugiu para Florença, onde viveu no anonimato e trabalhou como médica nas forças anglo-americanas. Sofria, porém, com a impossibilidade de distanciar-se emocionalmente dos pacientes – e decidiu abandonar de vez a medicina. Em 1947, após a guerra, recebeu o convite de seus sonhos: Viktor Hamburger propôs que se juntasse a ele na Universidade de Washington, em St. Louis, na pesquisa sobre o controle do número de neurônios.

Os experimentos que contribuíram para a compreensão de pelo menos algumas das funções do NGF iniciaram com a percepção de Rita acerca da necessidade de desenvolver um ensaio biológico capaz de revelar a presença do fator trófico (uma molécula que estimula neurônios e permite que recebam nutrição adequada para que cresçam e se desenvolvam). O grupo de Hamburger e Rita já havia mostrado que não só os alvos expandidos, como a duplicação de membros, aumentava a inervação e sobrevida dos neurônios sensoriais e motores. Também a implantação de alguns tipos de tumores, como o sarcoma 180, em camundongos causava efeito semelhante.

Rita postulou que esse sarcoma poderia produzir fatores tumorais semelhantes aos que eram normalmente deflagrados pelos tecidos-alvo dos neurônios de gânglios sensoriais e simpáticos. Para provar sua hipótese, colocou dois camundongos com tumores de sarcoma no bolso do casaco e embarcou para o Brasil com uma bolsa de estudos da Fundação Rockefeller para testar sua tese in vitro no laboratório da amiga Hertha Meyer, no Instituto de Biofísica. Na manhã de 2 de novembro de 1952, Rita escreveu: “O ainda desconhecido fator revelou-se de maneira tão glamurosa que deixou a todos sem ar, como se tivéssemos presenciado uma aparição milagrosa”. Segundo ela, “em poucas horas de cultivo, surgiu um magnífico halo de fibras nervosas em torno do gânglio”.
Reprodução
Imagem obtida em laboratório mostrava o gânglio irradiando os axônios, prolongamentos de neurônios que levam a informação elétrica para outras células neurais
A ideia de que o fator era realmente específico para os neurônios e, portanto, o único capaz de provocar tal efeito nesse grupo de células neurais foi fundamental para o sucesso dos 
experimentos que se seguiram. O ensaio biológico de gânglio sensorial ou simpático, engenhosamente imaginado e executado por Rita, permitiu a identificação de fontes prováveis do NGF, muito antes de sua composição ser conhecida.

MECANISMOS DE DEFESA
Rita e o fisiologista Stanley Cohen (com quem partilhou o Nobel) isolaram no componente ativo do sarcoma tanto proteínas como DNA. Para descobrir qual dessas moléculas realmente estaria envolvida no efeito biológico, utilizaram veneno de cobra, uma fonte rica em fosfodiesterase, enzima que cliva DNA. Quando testaram o tumor comum e o que continha veneno de cobra, viram que este provocava um grande aumento no halo de fibras em torno do gânglio simpático. Desta forma descobriram que o fator que buscavam existia também no veneno de cobra. 

Resolveram então verificar se o efeito era reproduzido em glândula análoga, a submaxilar de roedores. A identificação foi positiva, e o NGF, isolado. Foram necessárias 90 glândulas de rato para revelar o fator ativo nos ensaios biológicos como uma proteína com duas subunidades idênticas, ligadas de forma não covalente. Do RNA mensageiro retirado das glândulas salivares foi 
derivada uma proteína com 322 aminoácidos, muito maior que o NGF biologicamente ativo (118 aminoácidos), indicando haver um precursor que é clivado para tornarse ativo. Após o isolamento do RNA mensageiro o gene foi clonado em camundongos e depois no homem – e suas sequências publicadas na revista científica Nature, em 1983.

Outras importantes conclusões de Rita são que o NGF era capaz não só de ter um efeito sobre a sobrevivência de neurônios específicos do sistema nervoso periférico como também de atrair o crescimento de fibras neurais e de precipitar a diferenciação celular dos neurônios responsivos ao fator trófico. 

Após sua aposentadoria, ela voltou para a Itália – e continuou trabalhando. Suas pesquisas revelaram que o NGF tem ação também no sistema imune: recruta células inflamatórias e acionando mecanismos de defesa sistêmicos. Esta manifestação da molécula em vários tecidos, não só no nervoso, ironicamente foi uma das razões da desconfiança inicial em relação ao NGF – e talvez porque o reconhecimento tenha demorado a chegar. Hoje, mais e mais, vemos que muitos dos fatores que regulam o crescimento e funcionamento do sistema nervoso são comuns a outros sistemas. Mas Rita já havia reconhecido isso.

Ela também comprovou que a liberação de substâncias pelas glândulas submaxilares de NGF no sangue, em situações de stress, causa comportamento agressivo em roedores.

Determinada, aos 100 anos continua apoiando a maior participação da mulher na ciência. A Fundação de Paola e Rita Levi-Montalcini, as irmãs gêmeas, uma artista e outra cientista, oferece bolsas de estudo para mulheres com talento para as neurociências na África.
1909 – Nasce em Turim, Itália, em 22 de abril.

1936 – Gradua-se em medicina e cirurgia pela Universidade de Turim e prossegue estudos para especialização em neurologia e psiquiatria, mas envereda pela pesquisa básica em neurologia.

1947 – É convidada pelo embriologista Viktor Hamburger para assumir o posto de pesquisadora visitante na Universidade de Washington.

1952 – Demonstra o efeito do fator derivado de sarcoma, o fator do crescimento neural (NGF ) como promotor do crescimento e sobrevivência de neurônios de gânglios sensoriais e simpáticos in vitro.

1962 – Cria o European Institute for Brain Studies, em Roma.

1968 – Décima mulher nomeada para a Academia Americana de Ciências.

1969-1978 – Assume a diretoria do Instituto de Biologia Celular do Conselho Nacional de Pesquisa da Itália.

1979 – Aposenta-se da Universidade de Washington e continua seus estudos em Roma.

1986 – Recebe o Nobel em Medicina ou Fisiologia, com Stanley Cohen, pela descoberta, isolamento e clonagem do NGF .

2009 – Completa 100 anos e se mantém envolvida com inúmeras causas, trabalhando em seu laboratório e apoiando talentos femininos em neurociência na África
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